Antje Schrupp im Netz

A história do feminismo em quadrinhos

Intervista com Paulo Floro / Revista o Grito, April 2019

O livro discute temas importantes sobre os surgimentos das ondas feministas e é bem didático. Mas achei pertinente o uso do termo “breve” e também da delimitação do contexto (“Euro-Americano”). Pode nos contar como foi o processo de organização do conteúdo do livro?

Antje: A ideia deste projeto veio do editor que já havia começado uma série de quadrinhos “breves” para explicar os movimentos políticos. O primeiro contato acho que foi com Patu, então depois eles perguntaram se eu queria colaborar como co-autora.

Como nasceu esse projeto? Pode nos contar como foi o processo criativo até ele ser transformado em quadrinhos?

Antje: Obviamente, foi difícil decidir que questões e pessoas escolher em um enorme universo de ideias feministas ao longo dos séculos. Eu queria mostrar uma mistura de nomes proeminentes e menos conhecidos. Você não pode contar uma história do feminismo sem mencionar Simone de Beauvoir ou Judith Butler, por exemplo, mas um movimento complexo não é feito somente por alguns líderes de destaque. Eu queria ampliar o foco e apresentar não apenas ativistas dos direitos das mulheres em um sentido restrito, mas também ativistas de movimentos trabalhistas ou antiescravistas, por exemplo.

Quis mostrar o feminismo como um movimento pluralista com uma variedade de opiniões e até contradições, não como um partido monolítico para os “interesses das mulheres”. Com esses parâmetros em mente, identifiquei pessoas e problemas e eventos históricos e escrevi um primeiro rascunho da história. Então, passei esse material à Patu.

O processo criativo teve alguns desafios, como transformar um texto factual em um storyboard cômico e dramático. Eu tentei encontrar um jeito humorado, com um pouco de auto-ironia em meus diálogos e designs de personagens. Um dos maiores desafios foi ter uma quantidade delimitada de páginas para contar todas essas histórias. Isso influencia muito a narrativa e o modo com a história será apresentada. E para mim há sempre o desejo de contar mais perspectivas. Durante o processo do storyboard eu também comecei a ir a vários arquivos feministas e gastar muitas horas em pesquisa na internet para material visual. Acreditam que os quadrinhos enquanto mídia contribuam de alguma maneira específica para a disseminação do tema?

Antje: Com certeza!

O feminismo não é único, como é apontado no livro. De que forma a obra pode contribuir para alargar o debate sobre as diversas ideias e tendências feministas no mundo?

Antje: Na minha opinião, feminismo não é sobre a relação de mulheres e homens (ou outros gêneros), mas sobre as ideias das mulheres para o mundo. O feminismo, como você pode ver em muitos países, não reivindica apenas os direitos das mulheres, mas sim um mundo justo e uma boa vida para todos. Neste momento histórico, o mundo é dominado pela luta entre a globalização neoliberal-capitalista e o nacionalismo autoritário-racista. Os movimentos tradicionais de esquerda, dominados por homens, falharam repetidas vezes em apresentar uma alternativa. O feminismo pode ser uma alternativa quando deixar de lado sua perspectiva burguesa branca e historicamente dominante e abraçar a diversidade.

As mulheres não têm interesses comuns ou opiniões idênticas só porque são mulheres. Mas elas têm uma grande variedade de experiências e ideias que ajudariam a colocar o mundo em ordem novamente. Esta é uma verdade global, eu acho.

Como enxergam hoje o papel do feminismo em um mundo cada vez mais apegado às ideias conservadoras (caso de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil)?

Antje: Há uma razão pela qual os políticos de direita em todo o mundo escolheram o feminismo como seu principal inimigo. Lutar contra a liberdade das mulheres é literalmente uma das suas marcas. Eu acho que eles esperam nos manter ocupadas na defesa de direitos básicos, por exemplo, para escolhas reprodutivas ou liberdades sexuais.

Então, para nós, é ainda mais importante insistir que nosso objetivo é maior: feminismo é sobre justiça, uma renda básica, saúde, relações pessoais livres, direitos reprodutivos, habitação decente, redes de cuidado, liberdade de movimento e assim por diante, para todos os quase 8 bilhões de pessoas neste planeta Terra. Nunca devemos separar os direitos das mulheres dos direitos das pessoas. Isso vale especialmente para os líderes masculinos de esquerda, que muitas vezes pediram às mulheres que reformulassem sua própria agenda para se unirem a um movimento comum. Algo como “ajude os pobres agora, ajude as mulheres mais tarde”. Esta agenda falhou, é fundamentalmente errada. Temos que deixar isso bem claro: você não pode ajudar os pobres se você não se juntar ao feminismo. Se você não é feminista, você é parte do problema, não a solução, não importa quão “liberal” ou “socialista” você pense que é.

O lançamento do livro chega em um momento bem específico do Brasil em que a ministra dos direitos humanos e da família afirma que meninos devam usar azul e as meninas rosa. Como veem essa onda anti-progressista em relação às questões de gênero?

Antje: O pesadelo rosa-azul da cultura de hoje é, na minha opinião, um sintoma de um mundo que perdeu o sentido da pluralidade de gêneros e, talvez, até do pluralismo em si. Nem todo mundo é um “homem”, muito menos um homem branco, saudável e rico. Mas nós construímos sociedades inteiras baseadas neste ideário. Vivemos em simulações sociais que fecham os olhos para o fato de que todas as pessoas são carentes, dependentes dos outros, que não existem “homens feitos por si mesmos”.

Se você não é capaz de ver a realidade, você tem que inventar contos de fadas. Os clichês de gênero nada mais são do que um conto de fadas, na verdade, muitas vezes até mesmo uma história de horror. E são inerentemente ilógicos: se algo como “papéis naturais de gênero” realmente existisse, eles se manifestariam naturalmente. Você não teria que manipular ou forçar crianças pequenas, desde a mais tenra idade, a comportamentos conformativos ao gênero. O fato de que todos esses esforços para educar “meninas de verdade” e “meninos de verdade” são necessários é, em si, uma prova de que esses estereótipos são tudo menos “natural”.

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